De Miguel Ângelo Gomes a 20.01.2021 às 22:03
Sou apreciador dos cartoons como forma de arte e forma de manifesto político e social, e percebo que se pode revestir de várias formas, desde a ironia e sátira ao elogio ou homenagem, ou ainda à simples "provocação". Consigo entender a mensagem e respeito-a mesmo quando pessoalmente não concordo. Sou apreciador sobretudo da qualidade dos cartoons deste artista e da forma eficaz como passa para este tipo de arte a sua mensagem. E por isso não podia deixar de me manifestar sobre este cartoon em concreto e, acho que pela primeira vez na minha vida, uso uma caixa de comentário numa página de internet (normalmente não são sítios bem frequentados ou, pelo menos, não são usados de forma construtiva). Creio que este cartoon é demasiado duro e aponta o dedo de uma forma que não é completamente justa ao representar os decisores políticos (representados pelo António Costa) como os únicos responsáveis desta situação trágica. Se por um lado, os decisores políticos têm inegavelmente a sua quota de responsabilidade pelas regras que impõem (ou deixam de impor), por outro, todos nós enquanto sociedade temos a mesma responsabilidade através da autoproteção, que deveria ser instintiva mais do que regulada por força da lei. E não é isso que se vê nas situações reportadas na comunicação social nos últimos dias, em que as pessoas, de uma forma demasiado generalizada, procuram no catálogo das exceções previstas na lei qualquer desculpa para se poderem expor a si e aos outros ao risco e faltarem àquilo que seria o dever principal de resguardo. Uma imagem boa, e porventura mais realista, seria colocar a figura do Zé Povinho ao lado do António Costa na mesma atitude de prostração e respeito pela situação, solidário no lamento, mas também na responsabilidade pelo ponto a que isto chegou. Resta saber se tal não seria injusto para o António Costa, que, politiquices à parte, terá de lidar na sua consciência com a dúvida sobre as decisões tomadas, eventuais arrependimentos, e o impacto da sua ação na perda de vidas, ao passo que a “sociedade”, além de não ser responsabilizável, não tem de lidar com problemas de consciência porque a culpa é sempre do “vizinho do lado”. São demasiados os de nós, que seguem olhando para o lado como se o problema e a culpa fosse só dos outros. É verdade que tudo muda quando além de uns números diários, publicados à hora de almoço, o problema tem a cara de alguém conhecido ou que nos é próximo, mas devíamos todos fazer o que está ao nosso alcance para que não acontecesse a ninguém. E não o estamos a fazer. Pensando melhor, talvez esteja bem assim, não tenho a certeza que o Zé Povinho mereça ali estar a prestar homenagem. É mais justo e respeitoso para todos.